ATENÇÃO: esta é uma carta fictícia. Ela está inserida no contexto do livro "Fio Vermelho", publicado pela Editora Hope em 2021. É recomendável lê-lo antes de continuar a leitura desse post.
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Vivara, 11 de fevereiro de 1987
Querida Angélica,
Há exatos 365 dias o
meu olhar perdido encontrou o seu olhar assustado naquele primeiro dia de aula
na tradicional escola que leva o mesmo nome de nossa cidade. Era terça-feira.
Eu confesso para você que quando descobri que o retorno não seria numa segunda,
passei o domingo mais feliz porque ganhei um dia de descanso. Mal sabia eu que
aquela terça representaria o início do nosso destino juntos.
Acho que nunca falei
para você, de modo objetivo e direto, tudo aquilo que nosso primeiro encontro
causou em mim. Fiquei com isso na cabeça por dias e dias. Foi algo tão súbito e tão intenso que eu mesmo
custei a acreditar que era real. Pois bem, agora é minha vez de lhe expor os
fatos:
Por volta de 5h30
daquele 11 de fevereiro, minha mãe pousou a mão em meu ombro e me cutucou,
tentando me acordar. Exclamava meu nome não tão alto e nem tão baixo — você
conhece dona Regina, sabe que o tom de voz dela é neutro. —
Eu confesso que
estava ansioso para viver aquele dia. Mas a minha ansiedade não era boa. Era
uma ansiedade de quem estava prestes a... por falta de uma expressão melhor,
“entrar num ninho de cobras”. Rodrigo havia comentado comigo que, mesmo sempre
tendo melhores condições financeiras que as minhas, seus pais nunca quiseram
que ele estudasse na Vivara porque era desse jeito que escrevi que eles viam o
local.
Meu amigo sempre
comentou que, para sua família, de nada adiantava estudar na melhor escola da
cidade se o aluno ganhasse apenas conhecimento acadêmico. Qual o sentido em ser
o melhor aluno da sala, mas ter seu interior corrompido diariamente? Era assim
que ele via a Vivara. Era assim que eu via a Vivara. Uma escola que despejava
matérias, mas não ensinava que somos todos humanos e que precisamos praticar a
humanidade dia a dia. Ao contrário, as pessoas sempre diziam que a Vivara
encorajava os ricos a se sentirem cada vez mais superiores. Vivara formava
ricos e não alunos, era essa a ideia que tínhamos.
E, realmente, me
lembrar de tudo isso que costumávamos dizer, às vésperas de pisar na escola,
fez com que eu me sentisse ansioso e enjoado. Dormi mal à noite, mas quis tomar
uma atitude diferente do que alguns em meu lugar fariam: resolvi deixar de lado
essas ideias pré-concebidas e resolvi “ver para crer”. É claro que eu já sabia
que seria o centro das atenções — e não de uma maneira positiva — e é claro que
eu tinha muito medo de ser corrompido de várias maneiras: que me tratassem tão
mal a ponto de eu desistir de meus estudos ou que eu de alguma forma me
tornasse esse tipo de pessoa rica abstrata em minha mente.
Essa abstração, de
pessoa rica, logo se personificou. Rostos que outrora eram somente um borrão a
partir do dia 11 de fevereiro tornaram-se palpáveis e reais. Posteriormente, comecei
a ver Renatos, Joãos, Robertos e Júlias por todo lado desde o momento em que
atravessei o portão. Desculpe a comparação, mas assim que observei o pátio,
parecia um zoológico. E então, um frio na barriga me acometeu. Aquelas pessoas
eram reais. Os ricos existiam não só através do que eu ouvia falar deles, mas
eles estavam comigo. Daquele dia em diante eu passei a frequentar o mesmo lugar
que alguns deles, a escola, mas eu não era um deles. Eu nunca fui um deles.
Continuo não sendo.
Porém, o fato de
estar em algum lugar não quer dizer que você pertence a ele. É utópico e
irritante dizer que eu estava naquela escola com o objetivo de mudá-la. Isso
jamais aconteceu ou vai acontecer. Nunquinha. O fato de a Vivara ter oferecido
prova de bolsa foi justamente para tentar limpar a imagem após aquela tragédia
envolvendo os alunos do terceiro colegial e o menino mais novo, filho da
auxiliar de limpeza. O menino estava muito doente e foi até a escola com ela.
Não tinha onde ficar enquanto a mãe trabalhava e se escondeu no banheiro. E
aquela turma favorável à tortura fez o que fez quando viu o indefeso lá. Mas
isso já faz uns anos, você sabe. Só que o sangue do menino manchou a imagem da
Vivara. Não que os ricos se importassem, mas pouca gente aceitou trabalhar lá
depois disso tudo. A gente tinha medo.
Depois daquele
fatídico dia, Rodrigo, outros colegas de escola e eu andávamos sempre com
casacos a fim de esconder o uniforme de nossa escola porque tínhamos medo de
esbarrar com outros babacas da Vivara.
Enfim, você deve
estar se perguntando o motivo de eu ter feito a prova de bolsa se tinha tanto
medo assim dos valentões. Acontece, Angélica, que essas pessoas não são
valentonas. Pelo menos não são nem mais nem menos que eu. Eu me considero
valente por ter ido atrás de meus sonhos e de meu futuro. Por bater de frente
com meu destino e não aceitar nada menos do que eu mereço. Eu mereço ter uma
boa formação e, diferente de muitos amigos meus, quero fazer curso superior. E,
feliz ou infelizmente, Vivara é a escola que melhor prepara para isso. Claro
que, para muitos, posso parecer vaidoso por estudar nesse ninho de cobras. Mas,
para mim, a Vivara continua sendo isso: um ninho de cobras.
Exceto quando o meu
olhar encontrou o seu. Eu te garanto que não vi uma cobra diante de mim. Eu te
garanto que não vi um traço de pessoa rica. Eu vi uma garota tímida e assustada
diante de mim. Eu vi em seus olhos uma ansiedade de procurar por um lugar.
Você, assim como eu, estava procurando seu lugar. Não somente na sala, mas no
mundo. Você, assim como eu, estava deveras perdida. Não porque não fazia parte
daquele mundo, mas porque fazia, porém não se via nele. Seus olhos procuravam
outro lugar, procuravam outras pessoas. Ou melhor, procuravam alguém que entendesse
você.
Eu jamais colocaria a minha mão no fogo para defender que as pessoas se apaixonam pura e simplesmente com uma troca de olhares. Isso é fantasioso e irreal. A paixão vem com o tempo. Porém, uma troca de olhares, como foi a nossa primeira e intensa troca, pode despertar curiosidade. E foi isso que você despertou em mim. Curiosidade, no mínino, para saber seu nome — confesso que esbocei um sorriso ao ouvir a professora pronunciando seu nome na chamada.
Angélica, menina angelical, é claro. O destino das pessoas
não falha. Minha intuição não falha. Descobri, posteriormente, que era seu
destino ser uma menina não apenas angelical, mas diferente daquilo que o mundo
te obrigava a ser.
Disse anteriormente
que não mudaria a Vivara, não mudaria as pessoas. Não estava lá para isso e,
Deus me livre se estivesse. Mas o que eu não sabia era que eu poderia mudar
alguém. E esse alguém me mudar. Nosso encontro causou uma mudança aos poucos em
nós mesmos. Nosso encontro na Vivara despertou nossos corações.
Posteriormente, ficou
claro para mim: era seu destino ser minha e era meu destino ser seu.
Voltando para nosso
11 de fevereiro: antes mesmo de descobrir seu nome, algo em você me chamou a
atenção. Assim que nossos olhos se encontraram, eu fixei o olhar e te
acompanhei até se sentar na segunda carteira da penúltima fileira. Observei de
longe enquanto você retirava os materiais e um livro da mochila, depositando-os
na mesa. E depois, vi que você tirou um delicado laço vermelho, prendendo seus
cabelos num alto rabo de cavalo enquanto a professora e os demais alunos,
incluindo aquele que julguei ser um enxerido, Renato, que cortou meu momento ao
falar com você e então passei a observá-lo. Não com a mesma intensidade, é
claro. Mas a presença dele me lembrou de onde eu estava. Se a sua presença me
fazia esquecer, a dele me fazia lembrar.
Enfim, passei o resto
daquele 11 de fevereiro analisando as pessoas e admirando, de longe, você. Sou
muito curioso e o fato de você ler durante os intervalos de aulas e ser tímida
me faziam lembrar de mim mesmo. Sua postura naquele primeiro dia foi como um
espelho de mim mesmo. Nós dois quietos e muito concentrados: você no livro e eu
em você. E no seu laço vermelho.
Dávamos
de ombro aos comentários fúteis de outras pessoas, dávamos de ombro a qualquer
provocação. E, como naquele primeiro dia eu me senti o leão do zoológico, já
que todos me encaravam com uma curiosidade estranha e um certo ar de
superioridade — tememos o leão, mas nos achamos mais espertos que ele porque o
enjaulamos — você foi a única que não me lançou olhares com ar de desprezo.
Você foi a única que me lançou um olhar intenso no primeiro momento e foi a
única que me olhou posteriormente com certa cumplicidade. Você sabia que eu não
pertencia à Vivara, porque você também não. E isso me fez te enxergar diferente
do modo como enxergava os outros.
Eu
sabia que você até poderia andar com eles. Sabia que você provavelmente tinha
recursos financeiros. Mas eu sabia que você era igual a mim na essência:
tímida, dos livros e curiosa.
Os
olhos falam, Angélica. E, naquela manhã eu te li com os meus olhos. Eu li
aquela primeira página do novo começo de minha vida. Eu li,
despretensiosamente, a primeira página daquela que seria a minha história de amor.
Você foi como um livro que eu comecei a ler por curiosidade e se tornou meu
livro favorito. Essa é só a página 365. Faltam muitas, mas muitas outras.
Feliz
nosso dia, Angélica. Eu sei que esse dia é e sempre será especial para a gente,
porque ele simboliza, por fim, nosso destino. Meu destino é ser seu e seu
destino é ser minha.
OBS: Não foi de
imediato que eu associei aquele laço que você usava a algo muito maior que nós.
Eu apenas achei delicado e bonito. Combinava com o símbolo vermelho do uniforme
da Vivara. Mas é claro que, relendo aquela primeira página, hoje eu prefiro me
referir a ele de outra maneira: você usava um belíssimo Fio Vermelho.
Para sempre seu,
Jorge.